19 janeiro, 2007

As ferrovias do Rio de Janeiro na Revolta da Armada de 1893 (9)

9. Registros de testemunhas: a pequena E.F. do Norte em tempo de guerra


Com seus trilhos correndo paralelamente às margens da baía da Guanabara, então ocupada pela esquadra revoltada, a Linha do Norte tornou-se, desde o início das hostilidades, uma peça importante para a estratégia de defesa do governo do marechal Floriano Peixoto. A mencionada interdição dos serviços de barcas entre a capital e o porto de Mauá, em Magé, tornara aquela ferrovia o único caminho para se chegar a Petrópolis. E o que não era pouco importante, também o único acesso à Fábrica de Pólvora, em Estrela, próximo a Raiz da Serra. Por tudo isso aquela ferrovia viria a ser intensamente utilizada pelas tropas do governo nos meses seguintes como meio de transporte para soldados e equipamentos bélicos. Mas era igualmente importante protegê-la, pois as pontes sobre o Meriti, o Iguaçu e vários outros rios da região por onde corriam os seus trilhos, eram peças vulneráveis e possíveis alvos de ataques ou sabotagem. Aqueles rios eram razoavelmente navegáveis e por eles seria possível que os revoltosos fizessem incursões em terra para se abastecer ou para estabelecer bases de ocupação. As pontes, portanto, mereciam enorme atenção das tropas, tanto como objeto de proteção da ferrovia mas, também, como uma posição para conter eventuais tentativas de infiltração através dos rios.

A Guarda Nacional, incumbida por Floriano da organização da defesa, tratou de distribuir seus efetivos de modo a ocupar os principais pontos da cidade e proteger o litoral, desde a Copacabana, até o porto de Mauá, na Baía do Rio de Janeiro, bem como Guaratiba, Santa Cruz, Sepetiba, Iguaçu, Angra dos Reis, Parati, Mangaratiba, Niterói, Itaipu, Estrela, etc, a fim de evitar o desembarque dos revoltosos e assalto aos trapiches.[1] Os contingentes da Guarda Nacional foram reforçados por vários batalhões “patrióticos”, formados por voluntários dispostos a defender a cidade.

Por outro lado, o fato de se defrontarem cariocas e fluminenses com uma frente de batalha tão próxima às áreas urbanas fez com que a possibilidade de contato entre os soldados, os voluntários e seus aflitos e preocupados familiares ficasse muito facilitada. Assim, passados os primeiros grandes sustos e correrias de setembro, as escaramuças e as manobras militares foram mais ou menos se integrando ao ritmo de vida do restante da população.

O fato é que a região cortada pela Linha do Norte, particularmente o trecho fluminense além de Vigário Geral, era até então muito pouco conhecida dos cariocas da época e muito menos dos estrangeiros que chegavam ao Rio de Janeiro[2]. Dos milhares que foram obrigados a percorrer esse trecho, seja para irem a Petrópolis, seja por força de deveres militares, alguns deixaram seus registros do que então viram naquelas paragens.

O relato do capitão-tenente Conceição
É na linha de proteção em torno da baía montada pela Guarda Nacional que vamos encontrar um personagem, o jovem voluntário de nome Alfredo Conceição, cujo registro no episódio da Revolta da Armada passaria desconhecido não fosse a narrativa enviada por seu pai, o capitão-tenente Conceição, para o jornal “O País”, que a publicou na edição do dia 10 de outubro. O jovem voluntário, alistado no batalhão patriótico “23 de Novembro”, havia sido destacado para proteger a ponte sobre o rio Iguaçu, por onde corriam os trens da E. F. do Norte. Era a ponte da antiga “Passagem de S. Bento”.


Mais que dar publicidade às emoções do capitão-tenente Conceição o jornal acabou por deixar um registro interessante e raro dos primórdios daquela estrada de ferro. A narrativa constata a distribuição das tropas ao longo da estrada, mas também a precariedade do estado em que se encontrava aquela via férrea e do reduzido número de trens que faziam o percurso além do subúrbio da Penha.

A história de Conceição começa na estação de S. Francisco Xavier onde, pela manhã, toma um trem com direção à Penha, pois supunha que seu filho se encontrava acantonada na Fazenda Grande, naquele bairro. Mas antes que o trem parta recebe notícias que o batalhão tivera outro destino:

“Ao embarcar no trem, soube por oficiais que acabavam de chegar, que o batalhão 23 de Novembro se achava guardando as pontes sobre os rios Meriti e Iguaçu, da via férrea do Norte, achando-se meu filho nesta última. Estando a largar o trem, segui para a Penha, afim de lá tomar nova resolução.
Às 10 horas ali chegando, soube que só às 5 horas [da tarde] haveria outro trem para cima e que, se eu nele fosse, não voltaria no mesmo dia
[3]. Passei um telegrama a meu filho e preveni-o de que nesse trem [o das 5 da tarde] iria a muda de roupa.”O coração me ficava despedaçado, uma espécie de remorso me corroia a alma e me dizia que eu devia ver meu filho, custasse o que custasse. O chefe da estação da Penha me informara que dali ao Iguaçu havia a distancia de 20 quilômetros, distância que em três horas poderia ser vencida a pé[4]. Mas a lama escorregadia que havia sobre o leito da estrada era um obstáculo digno de ser ponderado. Entre o desejo e a ventura, o meu filho Mário [que o acompanhava na jornada junto com um empregado] entusiasmou-me. Eram 10 horas e 20 minutos quando empreendemos a marcha. Vencido o primeiro quilômetro, vi, pelo relógio, que o havíamos feito em 13 minutos; dando para os outros [quilômetros] 15 minutos, formei a intenção de às 2.1/2 da tarde abraçar meu filho, e assim foi."

Nada parece ter-lhe chamado a atenção antes de chegar à ponte sobre o rio Meriti. Ali, finalmente, encontra um grupo de soldados fazendo guarda à ponte da mesma estrada. Depois de se identificar o deixam seguir viagem e, pouco adiante, próximo ao local onde hoje está a estação Duque de Caxias, registra a presença do que seria um acampamento ou quartel, onde faz nova parada.

“Depois de pequeno descanso, empreendi de novo minha marcha. Estávamos no quilômetro 20 e a chuva começou a cair, fina, sem aragem alguma, pelo que o suor nos corria em grossos bagos[5]. Os pés se nos pesavam, graças ao acumulo da lama pegajosa nos sapatos. Raros transeuntes encontrávamos. Às 2 horas verificamos estar no quilômetro 25 e ouvimos dois tiros. Estávamos em uma curva quando, ao sairmos dela, avistamos a ponte grande do Iguaçu, sobre a qual se movia um troço de homens que pareciam satisfeitos, pelos modos por que se moviam apesar da chuva. Apertamos o passo e depois da mesma formalidade anterior aproximamo-nos da ponte, sobre a qual, empunhando a sua arma, avistei entre os outros o meu filho, que veio logo abraçar-me e ao seu irmão."


Depois é obrigado a caminhar mais alguns quilômetros até a estação de Pilar onde, às 5 da tarde, tencionava pegar o trem de volta para S. Francisco Xavier. Mas sua chegada ao ponto de partida ocorre somente às 8.1/2 da noite, com mais de duas horas de atraso sobre o horário previsto. Mas não era o fim da viagem: ainda lhe restava uma outra hora de caminhada, de S. Francisco Xavier até sua casa.

O relato de um turista estrangeiro, o médico Hänsel

Outra interessante notícia do que se passou no Rio de Janeiro naquela época foi registrada por um forasteiro, o médico alemão Emil Hänsel que esteve no Brasil nos tumultuados dias de fevereiro de 1894[6]. Hänsel presenciou a confusão em que se encontrava a baía da Guanabara ainda após cinco meses do início da contenda. Mas não fica na capital pois deve ir visitar um amigo que está em Petrópolis.

Sua viagem começa na estação da Central do Brasil, onde lhe chamam a atenção, de imediato, o baixíssimo preço das passagens, comparado com as da sua terra, a falta de uso de uniformes pelos funcionários, que eram identificados apenas por um boné, e ao tamanho acanhado daquela estação em proporção ao seu intenso movimento de passageiros.

No trajeto com destino a São Francisco Xavier o que mais lhe chamava a atenção era a presença de sentinelas em todas as estações, observando os viajantes. Depois, em S. Francisco Xavier, ao embarcar no trem para Petrópolis, anotou que a composição estava regularmente lotado, sendo que o contingente principal dos viajantes era também formado de soldados. Adentrando os chamados subúrbios da Leopoldina a igreja da Penha no alto do penhasco desperta a sua atenção, mas é novamente a presença dos militares ainda a visão mais constante:

“Na estação da Penha paramos alguns minutos. Fora transformada em vasto acampamento militar. Saltavam soldados, logo cumprimentados pelos camaradas na plataforma”.
O trecho seguinte da estrada é o mesmo que o capitão-tenente Conceição havia, meses antes, feito a pé, em companhia do filho e de um empregado. Também lhe pareceu que havia muito pouco o que registrar:


“O trem recomeçou a sua marcha e rodava aceleradamente pela baixada pantanosa, que em certos trechos mostrava mato denso e impenetrável. Só raramente via-se o casebre de um preto, que se arriscara fixar nesse terreno inóspito, para nele plantar algumas bananeiras e umas verduras, ou surgia a figura de algum cavaleiro armado, que havia saído de casa para caçar ou fazer uma visita.”
Na estação de Pilar, pouco depois de atravessar o rio Iguaçu, era feita a troca de trens. A espera foi grande o que deu ao viajante tempo suficiente para anotar o que viu.


“Cantinas só existem nas estações de trem maiores, e entre as bebidas, nelas só se vendem café, refrescos ou vinho. Mais importante é o movimento com fumo em geral e charutos, consumidos em quantidades inacreditáveis por menores e adultos de ambos os sexos. O bufê da estação em que tivemos de esperar, resumia-se numa folha de papel estendida no chão, com uma obesa e lustrosa preta agachada ao lado, a oferecer alguma frutas, já passadas, e bolinhos com enxames de moscas. Uma vasilha imunda continha um líquido pardacento. Quando um sedento dela se aproximou, perguntado se lhe queria servir um pouco de café, ela indicou-lhe um alcatruz que se encontrava ali perto e de cujo conteúdo nesse momento um cão se deleitava. O freguês desistiu e continuou com sua sede”[7].

Finalmente, depois de uma hora e meia chegou o trem que os levaria a Petrópolis. A viagem prosseguiu por regiões em que se alternavam o mato denso, uma seqüência de manguezais, e uma ampla variedade de espécies vegetais que lhe assinalavam a presença num país tropical. Com o cair da noite foi a vez de se surpreender com o vôo dos vaga-lumes, um inseto que até então desconhecia. Depois da troca de locomotivas em Raiz da Serra e novamente no Alto da Serra, o trem finalmente chegou ao seu destino, com duas horas de atraso.

Apontamentos de um historiador fluminense, Maia Forte

O historiador José Matoso Maia Forte (1873-1945) em seu conhecido “Memória da fundação de Iguaçu” deixou um registro muito interessante sobre o “ressurgimento” de Pilar, por conta do conflito de 1893[8]. Conta ele que o inesperado aumento do número de passageiros que por ali passavam em direção à Petrópolis, obrigados a passar horas aguardando os trens, estimulara o desenvolvimento de um comércio precário, porém movimentado, no local:

“Muitos anos depois de ser uma sombra da sua passada riqueza, o povoado, que era uma parada da “Leopoldina Railway” para os trens que iam e vinham de Petrópolis, teve uma época de renascimento temporário[9].
Foi em 1893 e 1894, durante a revolta de parte da esquadra no porto do Rio de Janeiro, dirigida pelo almirante Custodio de Mello.
O tráfego marítimo entre a Prainha, no Rio de Janeiro, e o porto de Mauá, e o terrestre daí à Raiz da Serra, houve, então, de ser paralisado e o transporte de mercadorias e passageiros passou a ser feito entre o subúrbio de S. Francisco Xavier, no Rio de Janeiro, e a Raiz da Serra. Pilar era o ponto de cruzamento dos trens e a permanência dos passageiros durante alguns minutos, animou os habitantes locais, os poucos que haviam ficado fiéis ao solo, a improvisarem um comércio de poucos momentos, quatro vezes por dia, servindo em um tosco rancho, construído às pressas, detestável café, águas minerais, etc, a uns, enquanto outros passageiros se abasteciam, nas mãos dos “molecotes” do povoado, de bananas, excelentes cambucás, dulcíssimos cajus e sapotis, saborosas laranjas, cuja paga lhes servia para atenuarem os efeitos da malária endêmica e da opilação”
[10].

A descrição de Maia Forte, como se percebe, não difere muito da de Hänsel quanto ao aspecto geral do lugar e, em particular, no que dizia respeito ao café ali oferecido. Do alemão não se poderia esperar que pudesse apreciar, naquelas condições, os sabores dos cambucás, cajus e sapotis, além de serem frutas que lhe seriam completamente desconhecidas. Por outro lado, o historiador fluminense é mais condescendente do que o médico alemão na questão dos horários dos trens.
(continua...)
Notas:
[1] Cf. Freire, Felisbelo. Op. cit. pg 111
[2] A última grande corrida em massa de cariocas à região havia sido em 1711, quando a capital sofreu o ataque de Duguay-Trouin. O governador na ocasião argumentou que devia priorizar a proteção ao caminho do ouro das Geraes e foi acampar com as suas tropas na Fazenda de São Bento, às margens do Rio Iguaçu, no atual município de Duque de Caxias.
[3] Em 1889 o trem fazia apenas duas viagens diárias. Levava cerca de 20 minutos para ir de S. Francisco Xavier à Penha.
[4] Na verdade a distância entre a estação da Penha e a ponte sobre o rio Iguaçu, seguindo a linha do trem, era de 17 km.
[5] Neste ponto (km. 20 da ferrovia) fica a ponte sobre o rio Sarapuí. Como o relato não menciona a existência de vigilância armada nesse local é provável que esse rio já não tivesse naquela época condições de ser navegado. Além da ponte do Sarapuí o capitão-tenente deverá ter passado também nos pontos onde existiam as paradas de Meriti, Sarapuí, Pantanal e São Bento, onde não deveria haver qualquer instalação digna de referência e que pudesse servir de apoio aos usuários da ferrovia.
[6] Hänsel, Emil “Uma excursão ao Brasil e aos estados do Prata [Ein Aufsflug nach Brasilien und den La Platastaaten]; tradução, introdução e notas de Carlos Wehrs. (Coleção Varnhagen, vol. 2).Rio de Janeiro. IHGB. 1992., 98 pp;
[7] Idem, pg. 35/36.
[8] Forte, José Matoso Maia “Memória da fundação de Iguaçú” R.Janeiro. Jornal do Comércio. 1933. pg 47/48.
[9] Vale a pena mencionar que nessa altura a estrada ainda pertencia à Cia. E. F. Leopoldina, empresa nacional, e que a Leopoldina Railway, de capitais ingleses, só assumiu a rede a partir de 1898.
[10] Forte, J.M.Maia, op. cit. pg. 47/48.

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