14 setembro, 2006

A inauguração da estação Duque de Caxias, antiga Meriti

Fatos e versões


Na edição do Jornal do Comercio de 24 de outubro de 1886, um domingo, saía o primeiro anúncio sobre os serviços da Estrada de Ferro do Norte informando que o trajeto da Corte (atual estação Central, na Avenida Presidente Vargas) até à Penha, teria início na estação de São Francisco Xavier. Nesse local os trens fariam correspondência com as composições da Estrada de Ferro D. Pedro II. O aviso era importante porque naquele domingo, o último de outubro, começavam as tradicionais festas em homenagem a Nossa Senhora da Penha. Os milhares de fiéis que costumeiramente acorriam à histórica igreja no alto da colina seriam os primeiros clientes da nova estrada. O anúncio informava, também, que o serviço continuaria regularmente a partir da segunda-feira, 25, cumprindo o mesmo trajeto.
A viagem e a festa de inauguração da nova estrada de ferro, entretanto, haviam ocorrido na véspera, no sábado, dia 23. Nesse dia, por volta das quatro da tarde, reuniram-se na estação de São Francisco Xavier o comendador Plínio de Oliveira, presidente da empresa, e os seus convidados para a viagem inaugural. Foram primeiramente à Penha, onde teriam chegado 28 minutos depois e, em seguida, conta o Diário de Notícias, teriam seguido por mais 22 minutos até Meriti. Dali, retornaram novamente ao arraial da Penha para a realização do ato solene.
Além desses informes jornalísticos, também o Ministério da Agricultura registrou a abertura do primeiro trecho da E. F. do Norte no relatório correspondente ao ano de 1886. Consta nesse documento que fora inaugurado “a 23 de outubro último o tráfego de passageiros entre aquela estrada [a E.F.D.Pedro II, na estação Francisco Xavier] e o rio Meriti, na extensão de 14 quilômetros, o qual tem sido mantido regularmente com três viagens diárias, em ambos os sentidos”.
Curiosamente, os historiadores da região costumam referir-se a esse acontecimento como tendo ocorrido em 23 de abril de 1886, seis meses antes da data correta. Mais que isso, a existência de vários locais com o nome de “Meriti” fez com que a confusão fosse um pouco mais além da questão da data, envolvendo também a questão do local.
Tudo parece ter começado quando José Mattoso Maia Forte publicou, em 1933, sua conhecida “Memória da Fundação de Iguaçu”, ano em que se comemorava o centenário da criação da então Vila de Iguaçu. Dentre os importantes fatos que haviam marcado a história local, Maia Forte destacava a chegada das primeiras ferrovias que cortaram a região, assinalando como elas modificaram a paisagem local e as atividades à sua volta. Ao mencionar o papel da Leopoldina Railway, então proprietária da E. F. do Norte, assim se referiu (pg. 120): “Esta linha pertencia à “The Rio de Janeiro Northern Railway”, sendo o tráfego inaugurado até Meriti, em 23 de abril de 1886”.
Além do provável erro tipográfico relativo ao mês em que se deu o evento, e que terá escapado à revisão, também foi crucial para a leitura e interpretação posterior de seu texto não ter deixado claro se o trecho inaugurado ia apenas até o rio Meriti, o que de fato aconteceu, se ia até os limites do território do distrito de São João de Meriti ou, como mais tarde se interpretou, até a estação de Meriti, atual Duque de Caxias, que ficava situada 1,8 km adiante do leito do rio Meriti[1].
Noronha Santos, outro importante historiador da primeira metade do século passado, registra o evento em seu “Meios de transporte no Rio de Janeiro”, de 1934. Dizia ele, provavelmente tendo como fonte o texto de Maia Forte e quase repetindo as palavras deste: “Inaugurou-se o tráfego até Meriti a 23 de abril de 1886” (pg. 363 da edição de 1996). Além de repetir a data mencionada no texto de Maia Forte, Noronha Santos nada acrescentava sobre a questão do local.
Em 1950 veio a público “Rio de Janeiro: o estado e o município”, de José Pedroso e Adolpho Porto, trazendo no capítulo relativo a Duque de Caxias (pg. 288) o registro de que “... em 23 de abril de 1886, nova estrada de ferro, a antiga “The Rio de Janeiro Northern Railway” cortou as terras do atual município de Duque de Caixas, ligando a estação de Meriti ao Rio.” Diferentemente das obras anteriores, estes autores deram uma interpretação ao termo “Meriti”, definindo-o como sendo “a estação Meriti”.
A referência à estação volta a aparecer em 1959, agora na abrangente “Enciclopédia dos Municípios Brasileiros” (vol. XXII, pg. 255) publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pouco depois, em 1965, a referência à estação aparece também no texto de José Lustosa, “Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histórico do município” (pg. 100).
Como seria normal, todas essas obras, por se caracterizarem em fontes de referência fundamentais para os que se interessam em estudar a história da baixada da Guanabara, passaram a pautar quase tudo o que se afirmou daí por diante sobre esse assunto.
Não obstante, na vertente dos autores ligados à história das ferrovias brasileiras, os registros com relação ao tema foram mais precisos.
Edmundo Siqueira, em seu “Resumo Histórico de The Leopoldina Railway”, de 1938, ao relacionar os documentos oficiais sobre os primeiros tempos da ferrovia, menciona (pg. 81): “O tráfego do trecho de São Francisco Xavier ao rio Meriti foi autorizado pelo Aviso do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas nº 158, de 18 de novembro de 1886, numa extensão de 14 quilômetros”.
Naquele mesmo ano, José Luis Batista apresentava no 3º Congresso de História Nacional, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, seu estudo “O surto ferroviário e o seu desenvolvimento”, onde assinalava que “Em outubro de 1888 foi inaugurado o primeiro trecho, São Francisco-Meriti, com 14 quilômetros...” (vol. VI, pg. 553).
Mais adiante, em 1961, foi a vez de José do Nascimento Brito, em “Meio século de estradas de ferro”, consignar que “O trecho de São Francisco Xavier ao rio Meriti foi inaugurado em outubro de 1886, ...” (pg.178).
Recentemente, entre o conjunto de obras que foram editadas por ocasião das comemorações dos 150 da inauguração da Estrada de Ferro de Mauá, em 2004, saiu o livro de Hélio Suêvo Rodrigues, “A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro”, onde afirma (pg.95), que “... em 23 de outubro de 1886 a companhia inaugurou sua 1ª seção, que ia de São Francisco Xavier até próximo de Meriti, limite entre o Distrito Federal e o estado do Rio de Janeiro, numa extensão de 14 quilômetros”.
Os elementos coligidos para esta nota parecem indicar, sem espaço para dúvidas que a data correta em que se deu a inauguração do primeiro trecho da E. F. do Norte foi a de 23 de outubro de 1886, e não 23 de abril do mesmo ano, como muitos autores tem mencionado.
Resta, entretanto, explorar um pouco mais a controvérsia sobre se é ou não correto associar a inauguração da estrada de ferro com a inauguração da estação Meriti. Três pontos podem ser acrescentados aos aspectos “literais” reproduzidos acima.
O primeiro ponto é o da clara referência à extensão do trecho inaugurado, de 14 km., referido tanto no documento do Ministério da Agricultura como no noticiário da imprensa. Ora, essa distância ia, exatamente, da estação S. Francisco Xavier até à margem direita do rio Meriti, cerca de 600 metros adiante da estação de Vigário Geral. A estação de Meriti, por outro lado, foi instalada a 15,671 km da origem, bem adiante, portanto, do trecho inaugurado[2].
O segundo ponto que vale considerar é o documento pelo qual o Ministério da Agricultura autoriza o tráfego no trecho seguinte da ferrovia, entre o rio Meriti e o rio Sarapuí, com extensão de 6,5 km. Esse documento é datado de 10 de março de 1887, cerca de quatro meses após a abertura do primeiro trecho.
O terceiro elemento vem da própria ferrovia, e consiste nos anúncios que ela fez publicar nos jornais da época informando do início dos serviços no novo trecho, a partir de 5 de março de 1887.
Assim sendo, parece não ter sido correta a associação feita por alguns autores de tomar o vocábulo Meriti, que deveria se referir ao rio do mesmo nome, pelo da estação Meriti, atual Duque de Caxias. O que os registros da época atestam é que tanto essa estação como a de Gramacho (antiga Sarapuí), situadas no 2º trecho da estrada, tiveram o tráfego efetivamente iniciado na data de 5 de março de 1887.

Notas
[1] Maia Forte, é bem verdade, deixou consignada no último parágrafo de seu histórico livro (pg. 113), a seguinte advertência: “Esta Memória, ainda que o seu autor já possuísse numerosas notas sobre Iguaçu, foi escrita e impressa em menos de vinte dias. Sirva isso de desculpa ao autor pelas omissões e outras falhas que forem notadas”.
[2] As quilometragens a partir de S. F. Xavier seriam: Penha: km. 8,460; Vigário Geral: km 13,400; D. Caxias: km 15,671; Gramacho: km. 19,760. Essa marcação foi alterada mais tarde com a inauguração da estação Praia Formosa, em 1909quando a partir da nova estação central “Barão de Mauá” inaugurada em 1926.De Duque de Caxias até a ponte sobre o rio Meriti são 1,8 km

BibliografiaBatista, José Luis. “O surto ferroviário e o seu desenvolvimento” in Anais do III Congresso de História Nacional, Outubro de 1938, R. Janeiro, Imp.Nacional, 1942
Brasil, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE. “Enciclopédia dos Municípios Brasileiro”, Rio de Janeiro, Vol. XXII
Brasil, Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. “Relatório de 1886”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1887
Brito, José do Nascimento. “Meio século de estradas de ferro: o resgate de sua memória”, R.Janeiro, S.José, 1961
Forte, José Mattoso Maia. “Memórias da Fundação de Iguaçu”, R. Janeiro, Tip. J. Comércio, 1933
Lustosa, José. “A cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histórico do município”, R. Janeiro, 1965
Pedroso, José e Porto, Alfredo. “Rio de Janeiro: o estado e o município”. R.Janeiro, Imprensa Nacional, 1950
Santos, Francisco A. de Noronha. “Meios de transporte no Rio de Janeiro: história e legislação”. R.Janeiro, Dep.Doc.Inf.Cultural, 1996
Siqueira, Edmundo. “Resumo Histórico de The Leopoldina Railway”, R. Janeiro, Carioca, 1938
Rodrigues, Hélio Suêvo. “A formação das estradas de ferro do Rio de Janeiro”, R. Janeiro, Memória do Trem, 2004.
Jornal do Comercio. Rio de Janeiro,
Diário de Notícias. Rio de Janeiro,



Brasília, abril de 2006